Uma das coisas que mais admiro quando assisto a um filme é a capacidade do diretor, do artista que o concebeu, de retratar elementos da realidade que não são facilmente expressáveis por intermédio da linguagem comum. Trata-se de um critério puramente pessoal, e estou perfeitamente consciente disso. É por essa clave que gostaria de analisar o filme que comecei a assistir ontem, do Akira Kurosawa, chamado High and Low, e compartilhar com vocês alguns elementos que considerei realmente interessantes.
Em primeiro lugar, há o fato de que se trata de um teatro dentro do cinema. O Bráulio Sebastião, um grande amigo que me compartilhou essa lista, já tinha me dito que se tratava de Shakespeare no cinema — e, de fato, durante a primeira hora do filme, na cena que se passa na sala do diretor industrial da empresa de sapatos, você tem realmente a impressão de estar diante de um drama tipicamente shakespeariano, no qual o ser humano é tracionado em sentidos opostos.
De um lado, existe o apelo da ambição, que se confunde com a própria personalidade do personagem — algo que ele mesmo confessa em certo momento, quando diz que o trabalho dele era a própria vida. É essa ambição que lhe dá a possibilidade de, por meio de um empréstimo obtido no Banco de Tóquio, comprar ações da empresa na qual trabalha e, assim, tornar-se dono dela. Do outro lado, ele é puxado pela pressão da sua própria humanidade: a compaixão, a identificação com seu chauffeur, cujo filho foi sequestrado por criminosos que agora tentam extorqui-lo.
O indivíduo, portanto, se vê diante de uma escolha inelutável. Esse foi um dos elementos que mais me chamaram a atenção, porque eu nunca tinha visto o cinema estruturado dessa forma.
Em segundo lugar, temos a presença feminina, na figura da esposa do diretor. Ela encarna tipicamente o papel feminino que nega o trágico, por assim dizer. Ela representa uma espécie de “Eva”, a tentadora, aquela que amplifica as emoções do momento quando pressiona o marido a ceder à compaixão, ao seu lado humano. Percebe-se como ela é volúvel e sensível a toda aquela carga emocional. O feminino, nesse filme, aparece como um amplificador das emoções envolvidas no trágico. Enquanto o personagem principal, que vive o drama, estrutura as coisas de forma relativamente racional, sua esposa já não consegue fazer isso. Essa é uma verdade profundamente ilustrada ali por Kurosawa.
Outro elemento que me chamou muito a atenção foi o comportamento do secretário do diretor. Num primeiro momento, ele é tentado a se vender aos rivais dentro da empresa, mas não cede, demonstrando uma forma inicial de reverência e fidelidade ao chefe. Contudo, ele acaba cedendo assim que percebe sinais de humanidade e compaixão no coração daquele que, até então, lhe parecia implacável e totalmente desprovido de sentimentos.
Isso é, de certa forma, um retrato do mundo corporativo — dos middle managers que só respeitam, na prática, a psicopatia. Nesse ambiente altamente competitivo, a humanidade é completamente reprimida. Quanto mais implacável, cruel e impiedoso é o chefe, tanto mais ele é admirado. É um elemento interessante já presente ali, nos anos 1960. Não estamos falando dos bovinos open spaces dos anos 2020.
Esses foram os elementos que mais me chamaram atenção nessa obra. Fica um sentimento de “quero mais”. Provavelmente vou me interessar por outros filmes do Kurosawa, ao contrário de outras recomendações que o pessoal me fez.
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